Enquanto isto, lá prás bandas da Ponta da Serra, n´Ourissanga, os cabras de Lampião, acoitados na fazenda de Zulé, planejavam invadir Monte Alegre para dar uma surra no Coronel Pedreira por ter denunciado à Volante sua presença nas redondezas, o ano passado, o que causou uma baixa muito grande nos seus cabras, ocasião na qual perderam Fífó, Cassutinga, Aimpim Brabo e outros cabras de valor. Fora numa quinta-feira. Forrozavam no pé da serra. Estavam tão acostumados com a tranquilidade do lugar que já brincavam desarmados e às vezes, exageravam na bebida, coisa que não acontecia em outros coités, quando, prevenidos, dançavam como se estivessem indo para a guerra. Pois, neste dia, os meganhas chegaram de improviso, atirando para todos os lados. Quando os cabras acordaram para o que estava acontecendo, já havia morrido gente, tanto cabras quanto pessoas que acorriam a estas festas para se distrair, por falta de opção de outros lazeres. Ainda assim, resistiram e obrigaram a Volante a recuar, fugir. Hoje, estão de volta, mas para se vingar do coronel linguarudo, do que por outra coisa. Estavam ali, sob as ordens de Corisco, pois lampião ficara pras bandas do Orobó. América os informara. Foi coronel Pedreira o denunciador. Ele não perde por esperar, dissera Virgulino, o capitão, rei do cangaço, cuja promessa nunca é esquecida. Podiam passar os meses, os anos, mas o capitão voltava. Não para fazer atrocidades como faziam a policia e os capangas dos coronéis, mas para cobrar justiça. Lampião se vingava dos coronéis que ele considerava mal, tirando-lhes bens e mantimentos para dar aos necessitados. Por isto, talvez, tenha Lampião resistido tanto às investidas da Volante e dos capangas dos coronéis. Roubar dos ricos para dar aos pobres, lema do cangaço, por isto mesmo era combatido pelos senhores da terra. Um para a paz social, diziam, agrediam o direito de propriedade.
quinta-feira, 19 de maio de 2016
terça-feira, 10 de maio de 2016
A QUINTA
A
quinta ficava cerca de uma légua da cidade, na estrada que lhe dava
acesso pelo Corre-Nu, bairro nobre da cidade, que tinha este apelido em razão
de, quando ainda em formação, ser local de encontro de namorados, quando certa
feita, um pai procurando por sua filha, flagrou-a nos braços de um mancebo, nus
como os índios paiaiás, que um dia correram aqueles
campos atrás de pacas, tatus e outros bichos.
Era
uma quinta porque não se podia chamar de fazenda aquele sítio de poucas tarefas
onde se lavrava a terra, plantando-se legumes, grãos, raízes, nela existindo apenas, umas poucas vaquinhas para o leite do dia dia.
O
prédio, uma construção de duas águas tinha além dos dois quartos, um celeiro, que se chama dispensa, para mantimentos e depósitos de ferramentas, onde se amontoavam celas,
alforjes, bridas, etc.
À
direita um pequeno curral de travesseiro de boa madeira que não se encontra
mais, hoje em dia e, à esquerda, um
pequeno aprisco e chiqueiro para ovelhas.
Neste
exato momento, vê-se a porta da varanda
aberta e duas pessoas, um homem e uma mulher se despedindo.
Em
seguida. o homem dirigiu-se ao mourão no terreiro, onde estava amarrado seu cavalo e montou-o
virando para a mulher que lhe acenava. Enquanto isso, Ruperto tinha
conseguido se aproximar sem ser visto e tão logo aquele cavaleiro sumiu na curva, deu
um salto sobre a mulher de punhal nas mãos, mandando-a que ficasse calada e
quieta. Ela não se mostrou surpresa, mas calma.
-
América Brasileiro?
-
Sim, senhor, disse.
Ruperto
empurrou-a para dentro, sempre com o punhal ameaçador.
-
Você pode provar?
-
Claro. Sem o menor pejo, abriu sua blusa, mostrando-lhe os seios, lindos, como nunca vira antes.
Ruperto
viu, então aqueles seios envoltos em cicatrizes de riscos feitos de punhal.
Mandou que se vestisse e ela o fez com a mesma calma com que se despira.
Se
não era bonita, não se podia chama-la de feia.
Uma boca pequena proporcional ao rosto, um tanto ovalado; Seus dentes
eram bem feitos, dando-lhe um ar brejeiro. Tinha uma covinha na face e os cabelos
castanhos.
-
Não é um pouco suspeito a visita de um
cabra a estas horas? Pode me explicar?
-
Com todo prazer. Como queria a volante que eu colhesse informações dos
cangaceiros se não estiver sempre com as portas abertas para qualquer um deles?
Ruperto
fixou os olhos no mel daqueles olhos, e de chofre perguntou.
-
Que dizem os cangaceiros destes sinais?
Com
serenidade disse:
Os cabras
nunca chegaram a vê-los, embora tenha tido dificuldades em resistir aos mais
afoitos. Talvez me matasse antes, talvez não, quem sabe como se comportar num
momento deste? Se fosse fácil não haveria erros no mundo. De qualquer modo, os
cangaceiros não são obcecados por sexo,
mas por justiça, assim me dizem, e parece ser verdade.
Mais
que arrependido, Ruperto lhe afirmou:
-
Não tardará a ser livre deles, América, Lampião e seus grupos estão cada dia mais
fácil de cair em nossa rede, até mesmo os maiores coiteiros já
estão convencidos disto.
-
Eu, por mim, nem mais me importo com nada, a esta altura de minha vida.
-Se já
não importa por que continua lutando?
- O
uso do cachimbo faz a boca torta, sorriu. Estou cansada; quatro anos que
mataram meu marido e me torturaram. Posso até esquecer meu marido, mas, cicatrizes? Diga, você não veio aqui para saber de meus
sentimentos?
- Não,
não foi para isso, e acariciou o cabo do seu punhal que tinha colocado na
bainha, presa à cintura.
-
Posso lhe fazer um café? Ou quer um chá de alecrim vaqueiro? É muito bom e
reconfortante.
-
Não, nem um, nem outro. Estou um pouco
preocupado com as informações desencontradas ultimamente.
Pela
primeira vez, ela lhe sorria, como velhos companheiros.
- Eu
continuo na minha luta, mas confesso que é difícil confiar tanto num lado, como
no outro. Com as atrocidades cometidas pela volante e tropas do governo, os
cabras se tornaram astuciosos, e, com certeza não perdoam um traidor. Um
traidor é um traidor, ninguém sabe que lado ele está traindo. Hoje é difícil
colher informações dos planos dos cangaceiros,
visto que se dividem em grupo e subgrupos, muitos dos quais não se sabe nem que
Lampião tenha alguma influência sobre eles.
- É,
disse Ruperto, penso que você já está farta de tudo isto, sentindo-se vigiada
por todos os lados. Vou arranjar um jeito de lhe tirar daqui.
-
Sempre a mesma história, quando não se é mais útil, descarta-se, disse América,
rispidamente.
-
Não é bem isso. Uma mulher bonita como você terá boas oportunidades em
Salvador. O governo pode-lhe arranjar uma boa colocação como prêmio por sua
contribuição à nossa causa. Mas, entenda, ainda precisamos de sua ajuda.
Como
posso servir, desta vez?
-
Fácil, quero apenas um nome, América. Entre nós há um traidor e precisamos
descobrir quem é.
- É
assim que o trabalho é fácil. Pimenta nos dos outros é refresco. Por que logo
eu?
- Você
é de nossa inteira confiança; Eu é que não posso sair por aí procurando um
traidor. Seria trucidado. Você sabe a raiva que o povo tem da polícia.
-
Não sem pouca razão. Cangaceiros, capangas, volante, polícia, todos animais.
Talvez até a polícia seja a pior de todos porque encobre seus crimes debaixo da
farda.
O
homem ficou estupefacto com a sinceridade da jovem, mas compreendeu
aquele momento de desabafo.
- Quando
me mandaram para cá, me preveniram de sua beleza, de sua altivez, de sua
inteligência, disse sem esconder um
certo interesse nesta mulher tão atrativa.
-
Por que você, não me abordou com uma pistola, mas com um punhal?
-
Justamente para não parecer um policial, como qualquer bandoleiro, como você há
pouco falou, sorriu de maneira tão franca que a América lhe pareceu um homem
diferente dos que já havia encontrado.
-
Você poderia me dar um tempo para que possa descobrir quem é esta pessoa?, perguntou Ruperto.
- O
mesmo tempo que tenho para viver porque
nem sei se acabo de completar esta frase.
-
Resposta inteligente, mas fique sabendo que a polícia tem pressa, que o governo
tem pressa, ajuntou Ruperto.
-
Nós nos encontraremos de vez em quando na igreja. Você sabe que o vigário está
com a gente. Eles não são bestas. A igreja sempre está do lado do poder.
-
Combinado, disse América, sempre na igreja, pelo menos por enquanto, porque
devo lhe dizer que não gosto muito de
padres, sujeitos enxeridos, metidos a saber de tudo, quando nada sabem.
-
Bem até a vista, mora sozinha neste ermo?
-
Não é tão ermo. Tenho meus cachorros, meu gado e alguns parentes que me visitam
de vez quando.
Ele
quis se insinuar, mas ela o enfrentou de forma tão altaneira que ele se sentiu
intimidado.
Ela
não deixou de reparar nele um homem bonito e perigoso. Estatura mediana, mas
esguio. Era, entretanto, um policial. Agem como autômatos, sem dó e sem
compaixão quando querem atingir um objetivo. Foram treinados para isso, não
para ser gente, incapazes de amar quem quer que seja.
A
vestimenta era a mais banal possível, dizia que para não chamar atenção. Não ia
à delegacia local e passava-se como um mascate, vendendo produtos da capital,
tanto que os da cidade passaram a lhe chamar de o turco, o sírio, o libanês,
tudo servia para alcunha-lo, posto que
maioria dos mascates era destas
nacionalidades. Saíam de cidade em cidade, tal como os ciganos, levando novidades, modas e os
mexericos da capital.
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